1 Introdução

A Constituição Federal de 1988 atribui competência privativa ao procurador-geral da República para o ajuizamento de representação perante o Supremo Tribunal Federal para fins de intervenção federal nos Estados e no Distrito Federal. Na esfera estadual, confere legitimidade ao Ministério Público Estadual para propor representação ao Tribunal de Justiça para fins de intervenção do Estado membro em seus Municípios, em caso de inobservância dos princípios indicados na Constituição estadual (arts. 35, IV, e 129, IV). Compete ainda ao Tribunal de Justiça processar e julgar a representação de inconstitucionalidade para fins de intervenção da União nos Municípios localizados em Território Federal.

O procurador-geral da República age por iniciativa própria ou mediante provocação de terceiro interessado. Em torno deste último caso, surgiu controvérsia no passado sobre se estaria ele obrigado a encaminhar a arguição de inconstitucionalidade no prazo fixado em lei ou se poderia deixar de ajuizar a representação, caso estivesse convencido de sua improcedência. Questão interligada, embora diversa, era a de saber se o procurador-geral poderia encaminhar a arguição de inconstitucionalidade com parecer contrário. Essas questões foram dirimidas pelo Supremo Tribunal Federal e já não comportam mais dúvida a respeito da orientação fixada.

Têm relevância na delimitação do alcance do instituto a identificação da natureza do processo na representação interventiva e do conteúdo da decisão aí proferida, que são indicativos de sua eficácia na esfera jurídica.

Por outro lado, subsiste controvérsia quanto à definição da parte ativa na ação interventiva, isto é, a de saber se o procurador-geral da República, ao qual a Constituição atribui legitimidade para a ação, atua como substituto processual da coletividade, como representante judicial da União ou como parte. Essas mesmas indagações surgem a respeito da representação interventiva estadual, de iniciativa exclusiva do procurador-geral de Justiça.

A análise dessas questões processuais constitui o objeto e a finalidade do presente artigo.

2 Evolução da ação interventiva no período republicano

2.1 Regime anterior à Constituição de 1988

A ação ou representação interventiva foi introduzida no sistema constitucional brasileiro na Constituição de 1934 para assegurar a observância dos chamados princípios constitucionais sensíveis, especificados em seu art. 7º, I, letras a a h. Foi a primeira Constituição a tratar do Ministério Público como instituição, inserindo-o no Título I (“Da Organização Federal”), Capítulo VI, entre os “Órgãos de Cooperação nas Atividades Governamentais” (arts. 95 a 98). A intervenção devia ser decretada por lei federal e só podia ser efetivada se o Supremo Tribunal Federal, provocado pelo procurador-geral da República, declarasse a constitucionalidade da lei federal interventiva (art. 12, V, primeira parte, e §§ 1º e 2º).

A declaração de constitucionalidade da lei federal interventiva envolvia, por consequência, a declaração de inconstitucionalidade do ato normativo ou do ato concreto estadual, por afronta aos princípios constitucionais sensíveis. A intervenção para garantir a execução de leis federais, porém, devia ser precedida de autorização do Senado Federal (art. 12, § 6º, b), não se sujeitando a prévio controle judicial.

A par do alto significado para o sistema federativo brasileiro, constituiu inovação de grande relevo na evolução histórica do Ministério Público, porque atribuiu ao procurador-geral da República legitimação exclusiva para a ação.

A legitimação ativa do procurador-geral para a representação interventiva compreende-se na atribuição clássica do Ministério Público de defesa da ordem jurídica, convindo lembrar, porém, que, no tocante aos litígios individuais concretos, a função de defesa da ordem constitucional já era reconhecida ao Ministério Público desde o Decreto n. 848, de 11 de outubro de 1890.

Essa função do Ministério Público era exercida concomitantemente com a de representante judicial da União. O Decreto n. 848/1890, primeiro ato normativo a tratar do Ministério Público no período republicano, incumbiu o procurador-geral da República de funcionar como representante da União e, em geral, de “oficiar e dizer do direito em todos os feitos submetidos à jurisdição do STF”, bem assim “de velar pela execução das leis, decretos e regulamentos que devam ser aplicados pelos juízes federais” (art. 22, b e c, repetido no RI/STF de 8 de agosto de 1891, art. 2º, § 2º). Incumbiu ainda o procurador da República em cada seção de “cumprir as ordens do Governo da Republica relativas ao exercício das suas funções, denunciar os delitos ou infrações da lei federal, em geral, promover o bem dos direitos e interesses da União” (art. 24, c),1.

Nessas atribuições, compreendiam-se os recursos interpostos das decisões da Justiça dos Estados de leis e atos contrários à validade ou à aplicação de tratados e leis federais (Decreto n. 510, de 22 de junho de 1890, que publicou a primeira Constituição Provisória, art. 58, § 1º, a, repetido no art. 59, § 1º, a, da CF de 24 de fevereiro de 1891) ou das decisões que dessem pela validade de atos e leis dos Estados contestados em face da Constituição Federal (Decreto n. 510/1890, art. 58, § 1º, b, repetido no art. 59, § 1º, b, da CF 1891), disposições constitucionais estas que implementaram o sistema difuso de controle de constitucionalidade no Brasil.

No regime constitucional de 1891, a partir da Reforma de 1926 (EC n. 26, de 3 de setembro de 1926), a competência para deliberar e para decretar a intervenção, em caso de afronta aos princípios constitucionais da União – hoje denominados princípios constitucionais sensíveis – era confiada ao Congresso Nacional2. Quanto à intervenção para assegurar a execução de leis federais, constituía atribuição exclusiva do presidente da República.

A Constituição outorgada de 1937 não contemplou a representação interventiva. Atribuiu competência à Câmara dos Deputados para decretar a intervenção, em caso de lei ou ato estadual, normativo ou não, infringente aos princípios sensíveis elencados no art. 9º, alínea e, n. 1, 2 e 3. A intervenção para assegurar a execução de leis federais (art. 9º, alínea f) foi conferida ao presidente da República, mediante requisição do Supremo Tribunal Federal (art. 9º, parágrafo único).

A representação interventiva ressurgiu na Constituição de 1946 para garantir a observância dos princípios elencados no art. 7º, inciso VII, a a g3. Dispunha o parágrafo único do art. 8º a respeito: “No caso do nº VII, o ato arguido de inconstitucionalidade será submetido pelo Procurador-Geral da República ao exame do Supremo Tribunal Federal, e, se este a declarar, será decretada a intervenção”. A intervenção, nesses casos, devia ser decretada por lei federal, como estabelecido no caput do mesmo artigo.

Nos termos dos arts. 12 e 13 dessa Constituição, competia ao presidente da República tornar efetiva a intervenção. Antes disso, porém, o Congresso Nacional tinha a prerrogativa de suspender a execução do ato arguido de inconstitucionalidade, se essa medida fosse bastante para restabelecer a normalidade no Estado4.

A ação interventiva constituiu instrumento relevante na contenção de desvios e na preservação do modelo federativo nacional, em especial antes do advento da EC n. 16, de 1965, que instituiu a ação direta de inconstitucionalidade, mas também, em alguns casos, já na sua vigência.

As Constituições de 1946 e de 1967, inclusive o texto da EC n. 1/1969, com efeito, arrolavam, entre os princípios constitucionais sensíveis, o da “independência e harmonia dos Poderes”, que não mais figurou no texto constitucional de 1988. A jurisprudência do Supremo Tribunal registra vários precedentes, em representações interventivas, em que se declarou a inconstitucionalidade de leis estaduais de origem parlamentar, principalmente relativas ao funcionalismo, por ofensa ao princípio da iniciativa reservada ao chefe do Poder Executivo, em defesa do primado da independência e harmonia dos Poderes5. Não se chegou, em qualquer desses casos, à intervenção normativa ou efetiva, porque, pronunciada pelo STF a inconstitucionalidade das leis, cuidaram os Estados prontamente de revogá-las.

A orientação fixada pelo Supremo Tribunal nesses julgados, além de corrigir essas distorções, certamente também teve o efeito de inibir novas práticas abusivas no âmbito estadual, que colocavam em risco o equilíbrio fiscal dos Estados membros e se distanciavam do modelo federal.

A Constituição de 1967 previu a intervenção para “prover à execução de lei federal”, no inciso VI do art. 10, e para exigir a observância dos princípios constitucionais sensíveis, no inciso VII do mesmo artigo. A decretação da intervenção pelo presidente da República dependia do provimento pelo Supremo Tribunal Federal de representação do procurador-geral da República, seja para prover à execução de lei federal, seja para assegurar a observância dos princípios sensíveis (art. 11, § 1º, alínea c). Nos termos do § 2º do art. 11, o decreto do presidente da República devia limitar-se a suspender a execução do ato impugnado, se essa medida pudesse ter eficácia. A EC n. 1, de 17 de outubro de 1969, reproduziu literalmente essas disposições da Carta de 1967, em normas que têm a mesma numeração do texto original.


1 A respeito desse Decreto, os autores que abordam o tema comumente põem em destaque este trecho da Exposição de Motivos de Manuel Ferraz de Campos Salles, então Ministro da Justiça, que demonstra sensibilidade quanto à elevada missão reservada ao Ministério Público e quanto à importância da instituição na consolidação de uma organização democrática: “O Ministério Público, instituição necessária em toda organização democrática e imposta pelas boas normas de justiça, está representado nas duas esferas da Justiça Federal. Depois do Procurador-Geral da Justiça, vêm os procuradores seccionais, isto é, um em cada Estado. Compete-lhes, em geral, velar pela execução das leis, decretos e regulamentos que devam ser aplicados pela Justiça Federal e promover a ação pública onde ela convier. A sua independência foi devidamente resguardada.”

2 Anotou a respeito Gilmar Mendes (2005, p. 6): “Na Constituição de 1891, já se esboçara tendência no sentido de judicializar os conflitos federativos para fins de intervenção, tal como ficou assente nas propostas de João Pinheiro e Júlio de Castilhos. A Reforma de 1926 consagrou expressamente os princípios constitucionais da União (art. 6º, II), outorgando ao Congresso Nacional competência privativa para decretar a intervenção (art. 6º, § 1º). Dessa forma, atribuiu-se ao Congresso Nacional, embora de forma limitada e ad hoc, uma função de controle de constitucionalidade”.

3 Este o teor do art. 7º, inciso VII, letras a a g, da CF/1946:

“Art 7º- O Governo federal não intervirá nos Estados salvo para: [...]. VII - assegurar a observância dos seguintes princípios: a) forma republicana representativa; b) inde- pendência e harmonia dos Poderes; c) temporariedade das funções eletivas, limitada a duração destas à das funções federais correspondentes; d) proibição da reeleição de Governadores e Prefeitos, para o período imediato; e) autonomia municipal; f) prestação de contas da Administração; e g) garantias do Poder Judiciário.”

4 Dispunham, com efeito, os arts. 12 e 13 da CF/1946:

“Art. 12 - Compete ao Presidente da República tornar efetiva a intervenção e, sendo necessário, nomear o Interventor.

Art 13 - Nos casos do art. 7º, nº VII, observado o disposto no art. 8º, parágrafo único, o Congresso Nacional se limitará a suspender a execução do ato arguido de inconstitucionalidade, se essa medida bastar para o restabelecimento da normalidade no Estado.”

5 V.g., Representação n. 414-PR, relator ministro Nelson Hungria, RTJ 14/262; Representação n. 415-PR, relator ministro Henrique D’Avila, RTJ 14/264; Representação n. 416, relator ministro Barros Barreto, RTJ 14/266; Representação n. 599-MA, relator ministro Lafayette de Andrade, RTJ 36/324 etc.

2.2 Regime da Carta de 1988

A Constituição de 1988 conferiu novo perfil ao Ministério Público, a começar pela definição de sua elevada destinação institucional, prescrevendo, no art. 127, que “o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

No art. 129, estão elencadas as funções do Ministério Público, judiciais e extrajudiciais, que têm o sentido de garantir efetividade à atuação institucional na consecução dos grandes objetivos descritos na regra do art. 127. Como anota Jairo Cruz Moreira (2009, p. 147), “a nova gama de atribuições constitucionais veio acompanhada da indicação dos meios e instrumentos necessários para dar efetividade ao desempenho das funções”. O inciso IV do art. 129 declara como função institucional do Ministério Público promover a representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos na Constituição.

Na Carta vigente, a intervenção da União nos Estados ou no Distrito Federal é prevista nas hipóteses excepcionais elencadas no art. 34, inclusive para prover a execução de lei federal e para assegurar a observância dos princípios sensíveis, como previsto em seus incisos VI e VII6. O art. 36, inciso III, na redação dada pela EC n. 45, de 2004, dispõe que a decretação da intervenção nessas duas hipóteses dependerá do provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de representação do procurador-geral da República7.

No regime da Constituição em vigor, foi editada a Lei n. 12.526, de 23 de novembro de 2011, que regulamenta o art. 36, III, para dispor sobre o processo e julgamento da representação interventiva junto ao Supremo Tribunal Federal. Segundo o disposto no art. 11 desse diploma, julgada procedente a ação e publicado o acórdão, o presidente do Supremo Tribunal Federal deverá levá-lo ao conhecimento do presidente da República para que dê cumprimento às medidas próprias da intervenção8. Nos termos do § 3º do citado art. 36 da Constituição, “o decreto limitar-se-á a suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade”.

O texto original da Constituição, no art. 36, IV, atribuía ao Superior Tribunal de Justiça competência para processar e julgar a representação do procurador-geral da República no caso de recusa à execução de lei federal. A EC n. 45, de 2004, dando nova redação ao dispositivo, suprimiu o inciso IV e conferiu competência ao STF para o processo e julgamento da representação interventiva, não apenas para garantir a observância dos princípios sensíveis, mas também para assegurar a execução de lei federal, especialmente porque a controvérsia a respeito envolve, muitas vezes, questão constitucional9.

A existência de controvérsia constitucional como causa possível da recusa de execução de lei federal, com efeito, é bastante para justificar a atribuição da incumbência ao Supremo Tribunal Federal, ao qual compete, precipuamente, a guarda da Constituição (CF/1988, art. 102). Se a recusa à execução de lei federal decorre de conflito com lei ou ato normativo estadual sobre a mesma matéria – o que, diga-se, ocorre com frequência –, a controvérsia envolve questão concernente à competência para legislar a respeito, que é de índole eminentemente constitucional, porque o âmbito material de competência legislativa da União e dos Estados membros é definido na própria Lei Fundamental.

Já a intervenção dos Estados nos Municípios foi originalmente estabelecida no § 3º, alínea d, do art. 15 da Constituição de 1967/1969, em caso de provimento pelo Tribunal de Justiça do Estado de representação do Chefe do Ministério Público local para assegurar a observância dos princípios indicados na Constituição estadual, bem como para prover a execução de lei ou de ordem ou decisão judiciária. Na Constituição de 1988, em vigor, a intervenção estadual nos Municípios está prevista em seu art. 35, IV, em caso de provimento pelo Tribunal de Justiça de representação para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição estadual ou para prover a execução de lei, ordem ou decisão judicial.

A representação interventiva estadual apresenta campo material mais abrangente do que a representação interventiva federal, porque cabível não apenas para garantir a observância de princípios indicados na Constituição estadual e a execução de lei federal, mas também para prover a execução de ordem ou decisão judicial10.

No regime constitucional vigente, como ocorria no anterior, o decreto do governador deve limitar-se a suspender o ato impugnado, se essa medida for bastante ao restabelecimento da normalidade (CF/1988, art. 36, § 3º, c/c art. 35, IV). A Lei n. 5.778, de 16 de maio de 1972, editada no regime da Constituição de 1967, na redação da EC n. 1/1969, dispôs que o processo e julgamento das representações de que tratava o art. 15, § 3º, alínea d, da Constituição, deviam regular-se pela Lei n. 4.337, de 1964, no que fosse aplicável, excetuado o seu art. 6º. Essa lei foi recepcionada pela Constituição de 1988, constituindo a disciplina da ação interventiva estadual de que trata o art. 35, IV, da CF/1988.

O art. 2º desse diploma introduziu inovação relevante na matéria, autorizando a concessão de medida cautelar, verbis: “O relator da representação poderá, a requerimento do chefe do Ministério Público estadual e mediante despacho fundamentado, suspender liminarmente o ato impugnado”.

No regime da Carta vigente, foi editada a Lei n. 12.562, de 23 de dezembro de 2011, que regulamenta o inciso III do art. 36 da Constituição Federal, para dispor sobre o processo e julgamento da representação interventiva perante o Supremo Tribunal Federal. O art. 5º dessa lei autoriza o Supremo Tribunal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, a deferir pedido de medida liminar na representação, que, nos termos do § 2º, poderá consistir na determinação de que se suspenda o andamento do processo ou os efeitos de decisões judiciais ou administrativas ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da representação interventiva.

Parte da doutrina considera que a medida liminar na representação interventiva é inconciliável com a natureza da ação, em especial porque a suspensão do ato arguido de inconstitucionalidade extrapola os limites da decisão de mérito, que tem a consequência apenas de vincular o chefe do Executivo a executar a intervenção11.


6 Dispõe o art. 34, incisos VI e VII, da Constituição de 1988, na redação da EC n. 29/2000:

“Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:

[...]

VI - prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial;

VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:

a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;

b) direitos da pessoa humana;

c) autonomia municipal;

d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta.

e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.”

7 “Art. 36. A decretação da intervenção dependerá:

[...]

III - de provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de representação do Procurador-Geral da República, na hipótese do art. 34, VII, e no caso de recusa à execução de lei federal.”

8 A Lei n. 12.562, de 23 de dezembro de 2011, que regulamenta o art. 36, III, da Constituição Federal, para dispor sobre o processo e julgamento da representação interventiva perante o Supremo Tribunal Federal, estabelece, no art. 11:

“Julgada a ação, far-se-á a comunicação às autoridades ou aos órgãos responsáveis pela prática dos atos questionados, e, se a decisão final for pela procedência do pedido formulado na representação interventiva, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, publicado o acórdão, levá-lo-á ao conhecimento do Presidente da República para, no prazo improrrogável de até 15 (quinze) dias, dar cumprimento aos §§ 1º e 3º do art. 36 da Constituição Federal”.

O Regimento Interno do STF, nos arts. 350 a 354, fixa normas procedimentais que se aplicam subsidiariamente à representação interventiva.

9 Anotam nesse sentido Jader Guimarães e Renata dos Santos Trancoso (s/d, p. 6), invocando o magistério de Elival da Silva Ramos, intitulado Controle de Constitucionalidade no Brasil: perspectivas de evolução (São Paulo: Saraiva, 2010):

“Deve-se, ainda, observar, que o inciso III, do art. 36, tal como dissemos, teve alteração inserida pela Emenda Constitucional 45/2004, que modificou a competência para o julgamento da representação interventiva do Superior Tribunal de Justiça (STJ) para o Supremo Tribunal Federal (STF), notadamente, porque, como afirma Ramos (2010, p. 246) ‘em atenção à circunstância de que pode ser alegada pelo Estado, em defesa do seu procedimento a inconstitucionalidade do ato legislativo descumprido, recolocou-se a matéria sob o crivo do Supremo Tribunal Federal’” (Guimarães, Jader Ferreira; Trancoso, Renata Vitória Oliveira dos Santos. Representação Interventiva: relevantes e inovadoras alterações inseridas pela Lei nº 12.562, de 23 de dezembro de 2011. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=02c27682b80b4624. Acesso em: 15 out. 2018).

10 No julgamento da Rcl 2.143 AgR, decidiu o Plenário do STF que a preterição da ordem cronológica dos precatórios constitui infração de índole político-administrativa, que rende ensejo à intervenção do Estado membro no município, “sempre que essa medida extraordinária revelar-se essencial à execução de ordem ou decisão emanada do Poder Judiciário – CF, art. 35, IV, in fine”. (Relator ministro Celso de Mello, DJ de 6 jun. 2003).

No AI 343.461 AgR (rel. ministro Celso de Mello, DJ de 29 nov. 2002), decidiu a 2ª Turma que o procedimento destinado a viabilizar, nas hipóteses de descumprimento de ordem ou decisão judiciais, a efetivação do ato de intervenção, tem caráter político-administrativo, não constitui causa e, portanto, não cabe recurso extraordinário. No mesmo sentido, RE n. 149.986, rel. ministro Octavio Gallotti, DJ de 7 maio 1993.

11 Anota a respeito Luís Roberto Barroso (2012, p. 359): “A natureza e a finalidade da ação direta interventiva não são compatíveis com a possibilidade de concessão de medida liminar. Não há como antecipar qualquer tipo de efeito, como a eventual suspensão do ato impugnado, uma vez que a própria decisão de mérito tem como consequência apenas a determinação de que o Chefe do Executivo execute a intervenção. Paradoxalmente, a Lei 5.778/72 previu a possibilidade de concessão de liminar na ação interventiva estadual”

Clèmerson Merlin Clève (2000, p. 134), por sua vez, assinala: “Cumpre reafirmar: a ação direta interventiva não se compatibiliza com a medida liminar. Deveras, a sustação liminar do ato impugnado é suficiente para transformar a ação direta interventiva, modelo de fiscalização concreta da constitucionalidade, em mecanismo de provocação da fiscalização abstrata de constitucionalidade, embora voltado exclusivamente para a proteção dos princípios constitucionais sensíveis”.

3 Natureza do processo e da decisão

O caráter contencioso do processo concernente à representação interventiva foi afirmado pelo Supremo Tribunal Federal nas primeiras ações dessa natureza, no regime constitucional de 1946.

Em 17 de julho de 1947, o Supremo Tribunal julgou a Representação n. 94-DF, de que foi relator o ministro Castro Nunes, submetida à Corte pelo procurador-geral da República, com fundamento no art. 8º, parágrafo único, da Carta de 1946. Foi ajuizada a pedido do governador do Rio Grande do Sul, que sustentava a inconstitucionalidade de dispositivos da Constituição Estadual sobre a escolha e desempenho da função dos secretários do Governo, próprios de um sistema parlamentar, incompatíveis com o princípio da divisão dos Poderes e com o regime presidencial estabelecido na Constituição Federal.

Examinando questão preliminar sobre a natureza da relação processual na ação interventiva, entendeu a Suprema Corte, na linha do voto do relator, que

[...] o Supremo Tribunal Federal não é provocado como órgão meramente consultivo, o que contraviria à índole do Judiciário; não se limita a opinar, decide, sua decisão é um aresto, um acórdão; põe fim à controvérsia, como árbitro final no contencioso da inconstitucionalidade”12.

No mérito, o Tribunal julgou procedente a representação para declarar a inconstitucionalidade dos preceitos da Constituição do Estado, inclusive das suas Disposições Transitórias.

Seguiu-se a Representação n. 95-DF, relatada pelo ministro Orozimbo Nonato, julgada na semana seguinte, em 23 de julho de 1947, em que o procurador-geral da República encaminhou à apreciação do Supremo Tribunal Federal, por solicitação do Ministro da Justiça e Negócios Interiores, a questão de inconstitucionalidade do art. 2º do ADCT de Pernambuco, que dispunha: “Se após a promulgação desta Constituição não houver sido diplomado o Governador, assumirá o Governo do Estado o Presidente da Assembleia Legislativa”.

Embora o procurador-geral da República tivesse emitido opinião no sentido da compatibilidade da norma com a Constituição Federal, o que poderia dar ao caso a aparência de simples consulta, entendeu a Corte que a controvérsia consistente na impugnação do preceito por transgressão a um dos princípios enumerados no art. 7º, VII, da Constituição, objetivamente demonstrada nos autos, era bastante para a configuração do contencioso de inconstitucionalidade. Tratando dessa questão e dos julgamentos em tese, acentuou o relator:

[...] não se cuida, no caso, de exercício de função consultiva, fazendo mister surgir a situação a que Castro Nunes chamou de contencioso de inconstitucionalidade.

Não há, insistamos, no caso dos autos, simples consulta ao Supremo Tribunal Federal, que não é órgão consultivo, senão judicante, mas a exposição de um conflito de natureza constitucional, elementarmente constitucional, não ocultando a forma algo dubitativa das comunicações a ocorrência do tumulto, uma vez que, apesar de promulgada a Constituição, que defere à chefia do Executivo, no caso, e episodicamente, ao Presidente da Assembleia, o Interventor persiste em continuar a ocupar aquela Chefia, e o Governo Federal declara abster-se de qualquer providência, antes da deliberação do Judiciário.

Afastou o Supremo Tribunal a hipótese de consulta, considerando configurado o contencioso de inconstitucionalidade, em razão da presença dos seguintes requisitos: 1º) a questão constitucional foi submetida ao exame do Tribunal pelo procurador-geral da República, a quem a Constituição conferia legitimação ativa para a representação; 2º) a dúvida do interventor do Estado de Pernambuco e do ministro de Estado da Justiça quanto ao art. 2º do ADCT da Constituição Estadual não era propriamente uma dúvida, porque evidenciava o propósito de não dar cumprimento ao dispositivo, sob fundamento de incompatibilidade com a Lei Fundamental; e 3º) essa arguição de inconstitucionalidade envolvia questão em torno do cumprimento do princípio da independência e harmonia entre os Poderes, compreendido no elenco do inciso VII do art. 7º da Constituição.

Essas diretrizes em torno da caracterização do contencioso de inconstitucionalidade foram definidas à luz do disposto no parágrafo único do art. 8º da Carta de 1946, segundo o qual, em caso de inobservância dos princípios sensíveis, “o ato arguido de inconstitucionalidade será submetido pelo procurador-geral da República ao exame do Supremo Tribunal Federal, e, se este a declarar, será decretada a intervenção”.

A fórmula constitucional foi interpretada no sentido de que compreendia a hipótese de iniciativa própria do procurador-geral, mas também autorizava pressupor a existência de representação de parte interessada que lhe houvesse sido dirigida nesse sentido.

A Lei n. 2.271, de 22 de julho de 1954 (art. 1º e seu parágrafo único)13, e, posteriormente, a Lei n. 4.337, de 1º de junho de 1964 (arts. 1º e 2º)14, que trataram sucessivamente da representação interventiva no regime da Constituição de 1946, cuidaram dessas duas hipóteses de arguição de inconstitucionalidade: a) a realizada diretamente pelo procurador-geral da República, sempre que tivesse conhecimento da existência de ato infringente dos princípios enumerados no art. 7º, VII, da Constituição; e b) a feita por parte interessada, caso em que o procurador-geral da República devia submetê-la ao Supremo Tribunal Federal, no prazo estabelecido.

Nessa linha, em comentário ao primeiro desses diplomas, sustentou Alfredo Buzaid (1958, p. 103):

O Procurador-Geral age motu proprio [...] toda vez que tiver conhecimento da existência de ato [...], ou mediante provocação (art. 1º, § único): Havendo representação de parte interessada, a qual deverá ser em 2 (duas) vias, o ato arguido de inconstitucionalidade será submetido pelo Procurador-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal, dentro de 90 (noventa) dias, a partir de seu recebimento.

Especificamente no tocante à natureza do processo na ação interventiva, a doutrina igualmente concluiu que se trata de controvérsia que envolve um caso de conflito federativo concreto, reafirmando o entendimento fixado nas Representações n. 94-DF e 95-DF.

Destacou Alfredo Buzaid (1958, p. 102-103 e 106) o caráter contencioso do processo da representação interventiva, nos seguintes termos: “Entendemos que o poder de submeter ao julgamento do Supremo Tribunal Federal o ato arguido de inconstitucionalidade representa o exercício do direito de ação, que o art. 1º da Lei nº 2.271 atribuiu privativamente ao Procurador-Geral da República”. Em outra passagem, assinalou o autor: “O processo tem caráter dialético e visa à composição de um conflito [...]. A função do Supremo Tribunal Federal não é responder a uma consulta; é decidir um caso concreto”.

Fazendo referência ao art. 12, § 2º, da Constituição de 1934, que cuidava da representação interventiva, assinalou, por igual, Moreira Alves (1993, p. 3):

Surgia, assim, a representação interventiva, em que, pela declaração de constitucionalidade da lei de intervenção, se afirmava, por via de consequência, a inconstitucionalidade de lei ou ato estadual. Ainda não se tratava, porém, de controle direto de constitucionalidade de lei em abstrato, porque essa representação dizia respeito a caso concreto de intervenção federal, e, portanto, a conflito federativo concreto.

A configuração do ilícito constitucional constitui pressuposto da intervenção. A inobservância de deveres federativos constitucionais – acentua Gilmar Mendes – “há de ser aferida como antecedente necessário de qualquer providência interventiva”. Após aludir à fase de verificação da ocorrência do ilícito, isto é, da representação interventiva do procurador-geral da República ao Supremo Tribunal Federal, observa:

A fórmula adotada parece traduzir aquilo que Kelsen houve por bem denominar “accertamento giudiziale dell’illecito [...] che condiziona l’esecuzione federale”. Evidentemente, esse accertamento giudiziale ou o contencioso de inconstitucionalidade, como referido por Castro Nunes, diz respeito ao próprio conflito de interesses, potencial ou efetivo, entre União e Estado, no tocante à observância de determinados princípios federativos. (Mendes, 2005, p. 7-8).

Anota Luís Roberto Barroso (2012, p. 351), nesse sentido, que, “a despeito da manutenção da nomenclatura representação, há consenso de que se trata de verdadeira ação”, acrescentando: “Cuida-se, sim, de um litígio constitucional, de uma relação processual contraditória, contrapondo União e Estado-membro, cujo desfecho pode resultar em intervenção federal”. Identicamente, Clèmerson Merlin Clève (1995, p. 101) observa que, não obstante a denominação representação, “consubstancia a direta interventiva, antes, verdadeira ação”.

Convergem, portanto, a doutrina e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido do caráter contencioso do processo judicial relativo à ação interventiva. Nesse aspecto, aliás, é que se divisa a distinção essencial entre a representação interventiva e as ações diretas de controle de constitucionalidade em abstrato. Como ressaltou o ministro Moreira Alves em voto na ADC n. 1-DF (Questão de Ordem), o Supremo Tribunal Federal, em vários julgados, firmou o entendimento de que a ação direta de inconstitucionalidade é um processo objetivo, em que não há partes contrapostas, destinada unicamente à defesa da Constituição15.

De outra parte, a decisão do Supremo Tribunal Federal ou a do Tribunal de Justiça do Estado, que derem provimento à representação interventiva do procurador-geral da República ou do procurador-geral de Justiça, pronunciando a inconstitucionalidade do ato impugnado, têm conteúdo declaratório. Não desconstituem o ato. O decreto de intervenção é que suspende a execução do ato, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade (intervenção normativa), ou, se não for bastante, provocará a sua exclusão do mundo jurídico, por providência decorrente da intervenção efetiva.

Em comentário à Constituição de 1946, observou Pontes de Miranda (1953, p. 488): “Temos a apreciação de inconstitucionalidade como parte do processo de intervenção, isto é, como questão prévia [...]”. E acrescenta: “A eficácia é que se dilata, pois a intervenção suspende a lei; note-se bem: a intervenção, e não o pronunciamento pelo Supremo Tribunal Federal [...]”. Por sua vez, em face do texto constitucional de 1967, na redação da EC n. 1/1969, assinalou o autor (1970, p. 257): “Se a decisão do Supremo Tribunal Federal é para a intervenção federal, a carga preponderante é só declarativa, pois a suspensão pelo Presidente da República é que desconstitui”.

Em voto proferido no RE 92.169-SP, ressaltou o Ministro Moreira Alves que a declaração de inconstitucionalidade na ação interventiva não se apresenta como instrumento de controle concentrado de constitucionalidade, “apenas possibilita (como elo de uma cadeia em que se conjugam poderes diversos) ao Presidente da República (ou ao Governador, se for o caso) suspender a execução do ato impugnado”16. Destacando esse entendimento, anota Gilmar Mendes (2005, p. 27) que “não se declara a nulidade ou ineficácia do ato questionado, limitando-se a afirmar a violação do Texto Constitucional no âmbito de um procedimento complexo que poderá levar à decretação da intervenção federal”17.

Idêntica a ponderação de Luís Roberto Barroso (2012, p. 359):

A decisão na ação direta interventiva limita-se a solver o conflito federativo que se estabeleceu entre a União e o Estado-membro, pronunciando-se acerca da violação ou não de princípio constitucional sensível. A eventual declaração de inconstitucionalidade de ato normativo estadual não o torna automaticamente nulo nem lhe retira a eficácia, pois este é o objeto de outra modalidade de ação: a direta de inconstitucionalidade.

Na ação interventiva, o conteúdo da decisão consiste na própria declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade do ato impugnado. Confere certeza jurídica ao pôr fim à controvérsia em torno do assunto, não comportando qualquer outra providência jurisdicional posterior.

A esse conteúdo unicamente declaratório da decisão do Supremo Tribunal Federal, na ação interventiva de iniciativa do procurador-geral da República, e da decisão do Tribunal de Justiça do Estado, na ação interventiva de iniciativa do procurador-geral de Justiça, a Constituição, em caso de provimento da representação, associa a produção de efeitos pertinentes às medidas de intervenção. A Constituição estabelece que a declaração judicial que pronuncia a inconstitucionalidade constitui pressuposto para os atos pertinentes à intervenção. Referidas decisões têm caráter vinculativo para o presidente da República ou para o governador do Estado, salvo se o Estado membro ou o Município tiverem tomado a iniciativa de revogação do ato.


12 Este o trecho do voto do relator, ministro Castro Nunes:

“São duas atribuições distintas, de índole diversa, mas articuladas: a decisão do Supremo Tribunal situa-se no terreno jurídico; a do Congresso no plano político, mas a título de sanção daquela.

Vem aqui, a propósito, esclarecer que, nos termos do assento constitucional e dos motivos de sua inspiração, o Supremo Tribunal não é provocado como órgão meramente consultivo, o que contraviria à índole do Judiciário; não se limita a opinar, decide; sua decisão é um aresto, um acórdão; põe fim à controvérsia como árbitro final no contencioso da inconstitucionalidade. É nessa função de árbitro supremo que ele intervém, se provocado, no conflito aberto entre a Constituição, que lhe cumpre resguardar, e a atuação deliberante do poder estadual.

Daí resulta que, declarada a inconstitucionalidade, a intervenção sancionadora é uma decorrência do julgado”.

13 Este o teor do art. 1º e seu parágrafo único da Lei n. 2.271/1954:

“Art. 1º Cabe ao Procurador Geral da República, toda vez que tiver conhecimento da existência de ato que infrinja algum dos preceitos assegurados no artigo 7º, inciso VII, da Constituição Federal, submeter o mesmo ao exame do Supremo Tribunal Federal.

Parágrafo único. Havendo representação de parte interessada, a qual deverá ser em 2 (duas) vias, o ato argüido de inconstitucionalidade será submetido pelo Procurador Geral da República ao Supremo Tribunal Federal, dentro de 90 (noventa) dias, a partir do seu recebimento.”

14 Os arts. 1º e 2º da Lei n. 4.337/1964 tinham a seguinte redação:

“Art. 1º Cabe ao Procurador-Geral da República, ao ter conhecimento de ato dos poderes estaduais que infrinja qualquer dos princípios estatuídos no artigo 7º, inciso VII, da Constituição Federal, promover a declaração de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.

Art. 2º Se o conhecimento da inconstitucionalidade resultar de representação que lhe seja dirigida por qualquer interessado, o Procurador-Geral da República terá o prazo de 30 (trinta) dias, a contar do recebimento da representação, para apresentar a argüição perante o Supremo Tribunal Federal”.

15 ADC n. 1 (Questão de Ordem), relator ministro Moreira Alves, RTJ 157, p. 382.

16 Este o teor da passagem contida no voto do ministro Moreira Alves (Re 92.169, relator ministro Cunha Peixoto, DJ de 18 dez. 1981): “A representação interventiva é instrumento jurídico que se integra num processo político – a intervenção – para legitimá-lo. Embora diga respeito à lei em tese, não se apresenta, propriamente, como instrumento de controle concentrado de constitucionalidade, uma vez que a declaração de inconstitucionalidade nela obtida não opera erga omnes, mas, apenas possibilita (como elo de uma cadeia em que se conjugam poderes diversos) ao Presidente da República (ou ao Governador, se for o caso) suspender a execução do ato impugnado.”

17 E, logo adiante, conclui:

“Vê-se, pois, que o STF limita-se, em princípio, a constatar ou a declarar a ofensa aos princípios sensíveis ou a recusa à execução de lei federal.

A decisão configura, portanto, aquilo que a doutrina constitucional alemã denomina Feststellungsurteil (sentença meramente declaratória). Do ponto de vista estritamente formal, o julgado não elimina a lei eventualmente declarada inconstitucional do ordenamento jurídico e não obriga, per se, o ente federado, não o condena, expressamente, a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. A decisão insere-se no contexto do processo político de intervenção como um elemento essencial, de caráter vinculativo, à decisão a ser adotada pelo Presidente da República.”

4 O procurador-geral em face da provocação de terceiro

No caso de provocação de terceiro interessado, surgiu inicialmente a questão de saber se o procurador-geral estaria obrigado a encaminhar a arguição de inconstitucionalidade ao Supremo Tribunal Federal.

Tratando da representação interventiva, em face da Constituição de 1946, acentuou a respeito Alfredo Buzaid (1958, p. 109-110):

Um exame superficial pode levar a crer que o procurador, havendo representação da parte interessada, deva sempre e necessariamente arguir a inconstitucionalidade. Mas essa interpretação não se compadece com a natureza de sua função. O Procurador-Geral da República só deve arguir a inconstitucionalidade quando disso estiver convencido. Sua missão não é a de mero veículo de representações. Recebendo a manifestação do interessado, o Procurador-Geral da República a estudará, apreciando se tem ou não procedência. Convencendo-se de que o ato arguido é inconstitucional, proporá a ação; em caso contrário, determinará o arquivamento.

Na Reclamação n. 849-DF, de que foi relator o ministro Adalício Nogueira, o Supremo Tribunal Federal decidiu que não estava o procurador-geral obrigado à propositura da ação. Embora se tratasse de ação direta de controle de constitucionalidade em abstrato, a orientação também prevalecia para a representação interventiva, porque fixada em face de normas processuais comuns aos dois institutos18. Esse entendimento foi firmado não apenas sob a invocação das normas constitucionais sobre os dois institutos, mas também à luz do disposto nos arts. 2º da Lei n. 4337/1964 e 174, § 1º, do Regimento Interno do STF. Este último dispunha sobre o assunto em razão do art. 119, § 3º, da CF de 1967, repetido no art. 120, parágrafo único, na redação da EC n. 1/1969. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal está consolidada nesse sentido19.

Questão diversa, mas interligada, consistiu em saber se o procurador-geral poderia encaminhar a arguição de inconstitucionalidade suscitada por terceiro interessado com parecer contrário.

Essa questão, entretanto, foi definitivamente superada no julgamento da Representação n. 1349-DF, realizado em 9 de setembro de 1988, antes, portanto, do advento da Constituição vigente, que tratava de arguição de inconstitucionalidade de normas da legislação federal sobre informática, apresentada por parlamentares. O Supremo Tribunal Federal, apreciando questão preliminar suscitada pelo relator, ministro Aldir Passarinho, decidiu que não é de se conhecer de ação direta de inconstitucionalidade “quando o próprio Procurador-Geral da República, logo ao oferecer a representação, declara inexistir eiva de inconstitucionalidade de lei objeto de arguição que lhe fora dirigida por terceiros”20.

E, com efeito, como salientado nesse julgado, o pedido na inicial da ação interventiva sofreu oscilação no regime das várias constituições. Na vigência das Constituições de 1934 e 1946, admitia-se o encaminhamento da arguição de inconstitucionalidade suscitada por terceiro com parecer contrário do procurador-geral. No regime da Constituição de 1967/1969, pelo menos a partir do Regimento Interno do STF de 1980, bem assim no da Constituição em vigor, porém, não mais seria possível o ajuizamento dessa ação com parecer pela constitucionalidade do ato objeto de questionamento.

As duas formas de arguição de inconstitucionalidade, isto é, a de iniciativa própria do procurador-geral e a encaminhada em face de provocação de terceiro interessado, previstas na representação interventiva, foram também adotadas na instituição da ação direta de inconstitucionalidade, em abstrato, de lei ou ato normativo federal ou estadual. A EC n. 16, de 1965, dando nova redação ao art. 101, inciso I, da Constituição de 1946, com efeito, inseriu na competência originária do Supremo Tribunal Federal o processo e julgamento da “representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral da República” (alínea k), com ênfase, assim, na provocação de terceiro interessado.

A referência à ação direta de inconstitucionalidade em abstrato de normas jurídicas, ao lado da representação interventiva, no ponto questionado, decorre da circunstância de que a hipótese de arguição de inconstitucionalidade provocada por terceiro e encaminhada pelo procurador-geral da República prevalecia para ambas essas ações, que, ademais, eram disciplinadas pelas mesmas normas processuais.

A forma da arguição de inconstitucionalidade na representação interventiva, porém, foi sensivelmente alterada na Constituição de 1967, cujo art. 11, § 1º, alínea c, reproduzido na EC n. 1, de 1969, dispôs que a decretação de intervenção por inobservância dos princípios enumerados no art. 10, item VII, bem assim quando se tratasse de recusa à execução de lei federal, dependia do “provimento pelo Supremo Tribunal Federal de representação do ProcuradorGeral da República”. Se a decretação de intervenção dependia do provimento da representação, devia esta necessariamente ter veiculado pedido no sentido da declaração de inconstitucionalidade do ato. Devendo a inconstitucionalidade ser arguida diretamente na inicial da representação interventiva, não mais podia ser admitido o ajuizamento dessa ação direta com parecer pela constitucionalidade do ato impugnado.O mesmo ocorreu no tocante à arguição de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, em abstrato, por via de ação direta do procurador-geral da República. O art. 114, I, l, da Constituição de 1967 foi repetido no art. 119, I, c, na redação da EC n. 1/1969, contemplando idêntica formulação: “representação do Procurador-Geral da República, por inconstitucionalidade ou para interpretação de lei ou ato normativo federal ou estadual”. Por razões idênticas, não mais se poderia admitir o ajuizamento de representação por inconstitucionalidade, em abstrato, com parecer do procurador-geral da República, autor da ação, no sentido da constitucionalidade da lei ou do ato normativo.

Nada obstante, o Regimento Interno do STF de 1970, que passou a tratar do assunto em razão do disposto no art. 119, § 3º, da CF de 1967, reproduzido no art. 120, parágrafo único, na redação da EC n. 1, de 1969, prescreveu normas processuais comuns aplicáveis à representação por inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, em abstrato, e à representação interventiva, sob o título genérico Da declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo (arts. 169 a 178), contemplando, no art. 174 e seu § 1º, as duas formas de arguição de inconstitucionalidade, e admitindo, quanto à representação provocada por terceiro, o seu encaminhamento ao STF, com parecer contrário do procurador-geral21.

Esta última forma de arguição foi afinal excluída por completo no Regimento Interno do STF de 1980, que, ao fixar regras processuais para a ação direta de inconstitucionalidade, somente contemplou a hipótese de representação dirigida no sentido da declaração de inconstitucionalidade da lei ou ato normativo federal ou estadual, consoante o disposto em seu art. 16922.

O mesmo se verificou no tocante à ação interventiva. O art. 354 do mesmo regimento interno, que se mantém inalterável desde o texto original de 1980, estabelece que “julgado procedente o pedido, o Presidente do Supremo Tribunal Federal imediatamente comunicará a decisão aos órgãos do Poder Público interessados e requisitará a intervenção ao Presidente da República”. A decisão no sentido da procedência do pedido, como pressuposto da intervenção, torna claro que, na petição inicial da ação interventiva, deve o procurador-geral necessariamente postular a declaração de inconstitucionalidade do ato impugnado.

Essa orientação prevalece no regime da Constituição vigente. Quanto à representação interventiva, o art. 36, III, na redação da EC n. 45, de 2004, dispõe que a decretação da intervenção dependerá de provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de representação do procurador-geral da República no caso de inobservância dos princípios constitucionais sensíveis, elencados no inciso VII do art. 34, bem assim no de recusa à execução de lei federal. O decreto de intervenção, com efeito, depende da existência de decisão que tenha declarado a inconstitucionalidade ou ilegitimidade do ato impugnado, de modo que o provimento supõe necessariamente que o pedido na ação tenha sido dirigido nesse sentido.

A Lei n. 12.562, de 2011, aliás, estabelece no art. 2º que a representação será proposta em caso de violação aos princípios referidos no inciso VII do art. 34 da Constituição ou de recusa à execução de lei federal e prescreve, no art. 3º, II, que “a petição inicial deverá conter a indicação do ato normativo, do ato administrativo, do ato concreto ou da omissão questionados”23. Nos incisos I e III, exige a indicação do princípio constitucional que se considera violado e a prova da violação constitucional, deixando claro que o objeto da representação consiste na declaração de inconstitucionalidade do ato ou da omissão questionados.


18 Este o teor da ementa do acórdão do STF na Reclamação n. 849-DF, relator ministro Adalício Nogueira, julgada em 21.1.1970 (DJ de 10 mar. 1974): “Reclamação. Desprezada a preliminar do seu não conhecimento, por maioria de votos, deu-se, no mérito, pela sua improcedência, ainda por maioria, visto caber ao Dr. Procurador-Geral da República a iniciativa de encaminhar ao Supremo Tribunal Federal a representação de inconstitucionalidade. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que se harmoniza com esse entendimento”.

19 Podem ser indicados ainda, entre outros, os seguintes precedentes: 1) MS n. 20.294 - AgRg - BA, de cuja ementa extrai-se o seguinte trecho: “A representação de inconstitucionalidade de lei, pelo Procurador-Geral da República, é decisão privativa dele” (RTJ 100/1013); 2) Reclamação n. 121-RJ, que consigna em sua ementa: “O titular da representação de inconstitucionalidade, o Procurador-Geral da República [...], tem a faculdade de oferecer a representação ou arquivá-la” (RTJ 100/954); e 3) Petição n. 66-DF, que tinha por objetivo a declaração de inconstitucionalidade de dispositivos de um decreto federal, foi indeferida pelo STF, sob o fundamento de que cabe privativamente ao procurador-geral da República oferecer a representação ou arquivá-la (RTJ 100/1).

Invocando esses e outros julgados, assinala o Ministro Celso de Mello em obra doutrinária: “O Procurador-Geral da República não está obrigado nem pode ser compelido a ajuizar perante o Supremo Tribunal Federal a ação direta de declaração de inconstitucionalidade. Em consequência, torna-se perfeitamente lícito ao Procurador-Geral da República determinar o arquivamento de qualquer representação que lhe tenha sido dirigida. O Procurador-Geral da República atua discricionariamente” (Mello Filho, 1986, p. 334).

20 Representação n. 1.349-DF, relator ministro Aldir Passarinho, julgada em 8.9.1988, RTJ 129, julho de 1989, p. 41-60.

21 Dispunham o art. 174 e seu § 1º do Regimento Interno do STF:

“Art. 174 - O Procurador-Geral da República poderá submeter ao Tribunal o exame de lei ou ato normativo federal ou estadual, para que este declare a sua inconstitucionalidade.

§ 1º - Provocado por autoridade ou por terceiro para exercitar a competência prevista neste artigo, o Procurador-Geral, entendendo improcedente a fundamentação da súplica, poderá encaminhá-la com parecer contrário.”

22 Dispõe o art. 169 do RI/STF de 1980, que se encontra em vigor: “Art. 169 - O Procurador-Geral da República poderá submeter ao Tribunal, mediante representação, o exame de lei ou ato normativo federal ou estadual, para que seja declarada a sua inconstitucionalidade”.

23 No julgamento da Intervenção Federal n. 114-MT, de que foi relator o ministro Néri da Silveira, chamada de Caso Matupá, o Supremo Tribunal Federal firmou orientação no sentido de que a representação interventiva podia ter por objeto não apenas lei, ato, normativo ou não, mas também omissão do Estado membro, em particular no tocante à inobservância dos “direitos da pessoa humana”, que foi introduzido como princípio constitucional sensível no art. 34, VII, b, da Constituição de 1988.

Quanto aos aparentes termos restritivos do art. 36, § 3º, da Constituição, que trata da suspensão da execução do ato impugnado, que não compreenderia a hipótese de omissão, o certo é que a suspensão, nos termos literais da regra, está condicionada à eficácia dessa medida – “se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade” –, anotando, a propósito, o ministro Sepúlveda Pertence que “pode haver anormalidades de fato, a cuja cessação não baste a suspensão do ato estatal”, caso em que deverá ser realizada a intervenção efetiva (IF n. 114-MT, RTJ 160, p. 23). Esta última providência, evidentemente, só deve ser tomada caso o próprio Estado membro não corrija a anormalidade, de forma efetiva e cabal, em atenção ao julgado do Supremo Tribunal Federal.

5 Parte ativa na ação interventiva

A Constituição de 1988, como ocorreu nos textos constitucionais precedentes sobre a matéria, confere legitimação ativa ao procurador-geral da República para o ajuizamento da representação interventiva da União nos Estados, seja para prover a execução de lei federal, seja para assegurar a observância dos princípios constitucionais sensíveis. No âmbito dos Estados, a legitimação é atribuída ao procurador-geral de Justiça. O caráter de exclusividade dessa atribuição do chefe do Ministério Público da União e do chefe do Ministério Público estadual, o primeiro na esfera federal e o segundo na estadual, constitui imperativo constitucional (CF/1988, arts. 129, IV, 36, III, e 35, IV).

Ainda subsiste controvérsia, contudo, quanto à identificação da parte ativa na ação direta interventiva, que consiste em saber se o procurador-geral da República, legitimado para a ação, age como substituto processual da coletividade, como representante judicial da União ou como parte.

Tratando da matéria no regime da Constituição de 1946, sustentou Alfredo Buzaid (1958, p. 107) que o procurador-geral da República opera como substituto processual da coletividade, isto é, age em nome próprio, mas em defesa de toda a coletividade, “empenhada em expurgar a ordem jurídica de atos políticos manifestamente inconstitucionais e capazes de por em risco a estrutura do Estado”24.

Outra corrente, formada desde os primeiros tempos em que instituída a ação direta interventiva, entende que o procurador-geral da República atua na condição de representante judicial da União, deduzindo nessa ação direta um interesse que não lhe é próprio, mas sim da representada25.

Ainda à luz da Carta de 1946, Barbosa Moreira (1964, p. 75-76) refutou essas duas correntes. Assinalou que a doutrina segundo a qual o procurador-geral da República opera como substituto processual da coletividade, “isto é, tem legitimatio ad causam sem titularidade no plano do direito material” (p. 74), repousa em falso pressuposto, porque, se assim fosse, não se compreenderia a limitação da intervenção apenas aos atos dos poderes estaduais, nem a que restringe a intervenção à inobservância dos princípios constitucionais elencados no art. 7º, inciso VII, daquela Constituição.

Acrescentou que a controvérsia sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade, à luz dos princípios constitucionais sensíveis de qualquer ato emanado do órgão estadual, nada mais é do que uma discussão sobre a existência de um pressuposto bastante à decretação da intervenção no Estado. Se assim é – prossegue –, sobreleva outro interesse, distinto daquele interesse genérico da coletividade na eliminação de quaisquer atos inconstitucionais: “o interesse da União, como guardiã da convivência federativa, em aplicar aos Estados violadores dos princípios constitucionais sensíveis a sanção prevista na Carta da República”.

Procede, em nosso entender, o juízo crítico do autor. Os sucessivos textos constitucionais republicanos não atribuíram ao Ministério Público a função de defesa de todos os interesses da coletividade, em caráter amplo e genérico. A Constituição vigente, por sua vez, confere ao Ministério Público a função institucional de defesa, além dos interesses individuais indisponíveis, também dos direitos sociais indisponíveis, difusos e coletivos, que são especificados e delimitados na ordem jurídica.

A função institucional do Ministério Público de promover a representação interventiva não se compreende na atribuição de defesa dos interesses sociais indisponíveis. Trata-se de incumbência inerente à fase de deliberação do processo de intervenção, em que se controverte sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do ato impugnado, compreendida na incumbência clássica do Ministério Público de defesa da ordem jurídica, em especial da ordem jurídica constitucional.

Contestou também Barbosa Moreira (1964, p. 67-80) a afirmação de que o procurador-geral da República, nessa ação direta, atuaria como representante, deduzindo um interesse que não lhe é próprio, mas sim da União. Nessa refutação, sustenta o autor sua própria posição, a de que, na ação de inconstitucionalidade interventiva, age o procurador-geral da República não como representante da União, mas sim precisamente naquela qualidade que o texto constitucional lhe atribui, de chefe do Ministério Público da União, em que assume a posição de parte, quer em sentido formal, quer em sentido material, deduzindo, como ocorre na ação penal, pretensão própria, não pretensão alheia.

Este, ao nosso ver, o entendimento que se compatibiliza com os sucessivos textos fundamentais, desde a Constituição de 1934, que instituiu a representação para fins de intervenção da União nos Estados, até a Constituição atual, de 1988, que sempre conferiram legitimidade ao procurador-geral da República para o seu ajuizamento.

A exatidão dessa tese pode ser evidenciada: 1º) pelo elemento histórico, assim considerado o estado de direito existente sobre a matéria por ocasião do advento da Revisão Constitucional de 1926, que foi determinante da divisão das funções interventivas entre os órgãos constitucionais dos três Poderes do Estado, separação esta seguida pelos posteriores textos constitucionais, inclusive pela Constituição vigente; e 2º) pela divisão das competências do processo interventivo, estabelecida na Lei Fundamental, mediante imputação de funções próprias aos órgãos por meio dos quais o Estado exerce suas atribuições constitucionais, excluindo a ideia de representação.


24 Essa posição é compartilhada pelo prof. Dirley da Cunha Júnior, segundo o qual o procurador-geral da República, legitimado ad causam para a propositura da ação direta interventiva, “atua em nome próprio, mas na defesa de toda a coletividade” (Cunha Junior, 2014, p. 264).

25 Em obra doutrinária, sustenta Gilmar Mendes (2005, p. 9-10) que o procurador-geral da República instaura o contencioso de inconstitucionalidade como representante judicial da União Federal, que “tem interesse na integridade da ordem jurídica, por parte dos Estados-membros”. Considera que a ação direta interventiva constitui um “litígio constitucional”, tendo a Constituição de 1946 outorgado a legitimidade da ação ao PGR, “a quem, como chefe do MPF, competia defender os interesses da União (art. 126)”, acrescentando que “a fórmula adotada parece revelar que na ação direta interventiva, menos que um substituto processual, ou parte, o PGR exerce o mister de representante judicial da União”. E prossegue: “Mesmo a outorga da representação processual ao Procurador-Geral da República (CF de 1988, art. 36, III) – acentue-se que tal como nos modelos constitucionais de 1946 e de 1967/1969, o Procurador-Geral da República atua nesse processo, hoje em caráter excepcionalíssimo, como representante judicial da União – não se mostra hábil a descaracterizar a representação interventiva como peculiar modalidade de composição judicial de conflitos entre a União e a unidade federada”.

Essa também foi a posição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (1980, p. 192), segundo o qual, na representação interventiva, “se cogita do exercício do direito de ação, cuja autora seria a União, representada pelo Procurador-Geral da República, e o réu o Estado federado, a que se atribuía haver violado princípio constitucional da União, e que devia ser citada na pessoa de seu representante legal, para deduzir a sua defesa ante o Supremo Tribunal Federal”.

Clèmerson Merlin Clève (1995, p. 103) acentua a respeito: “São partes na ação direta interventiva a União, representada pelo Procurador-Geral da República, e o Estado-membro ou o Distrito Federal”. Após referir que a representação judicial e extrajudicial da União, que, nos regimes constitucionais anteriores, cabia à Procura- doria da República, foi atribuída à Advocacia-Geral da União com a Constituição de 1988, assinala: “O Constituinte de 1988 parece não ter compreendido isso, daí porque, mais uma vez, deixou nas mãos do Procurador-Geral da República o poder de provocar a tutela da jurisdição constitucional por meio da referida ação [...] sem atinar para o fato de que, agora, a União conta com um Advogado-Geral”. Em outra passagem da obra, observa o autor: “A atribuição da titularidade exclusiva da ação ao Chefe do Ministério Público, seja no plano federal, seja no plano estadual, parece decorrer de manifesto equívoco. A titularidade da ação deveria caber ao Procurador-Geral do Estado, enquanto representante judicial do Estado-membro” (p. 263-264).

5.1 Controvérsia no regime da CF de 1891 e a Revisão de 1926

Na vigência do art. 6º do texto original da primeira Constituição republicana, de 1891, que fazia referência genérica e lacônica ao Governo federal como agente da intervenção26, a doutrina se dividiu a respeito do alcance da expressão, sustentando parte dos autores que dizia ela respeito ao Poder Executivo, enquanto outros entendiam que compreendia os três poderes da União27.

Na essência da controvérsia, estava em jogo a questão da extensão da garantia da autonomia dos Estados membros. Em defesa do significado mais abrangente da locução, entre outros renomados juristas, ponderava João Barbalho (1902, p. 20): “A índole e importância do poder de intervenção, melindroso em seu uso, é de suma gravidade para ficar exclusivamente competindo ao Executivo, que é em negócios desta natureza o poder mais capaz de abusos”.

A exegese mais restritiva, entretanto, acabou prevalecendo nos longos primeiros tempos de vigência dessa regra constitucional, anotando a respeito Pinto Ferreira (1989, p. 305):

No Brasil, a Constituição de 1891 permitiu a prática da intervenção federal, segundo a inspiração norte-americana. A intervenção foi mesmo uma das chagas da Primeira República brasileira, consignada no art. 6º do seu contexto, e rudemente adotada pelos vários presidentes, convulsionando o País.

A respeito da prática das intervenções nesse período, após referir que “a política federal, em numerosos casos, queria intervir por motivos partidários”, esclareceu Oswaldo Trigueiro (1980, p. 108-109):

O uso e o abuso das intervenções, no Brasil como na Argentina, foi, durante muito tempo, o tema mais polêmico da vida constitucional. [...] Com as numerosas violações que sofreu, o art. 6º perdurou no texto constitucional por espaço de trinta e cinco anos. Não resistiu, porém, à reforma de 1926 [...].

A Revisão Constitucional de 1926 separou as funções interventivas em duas fases, a de deliberação e a de execução. Manteve a expressão genérica Governo federal no caput do art. 6º, mas dividiu entre os três Poderes da União a competência para decretar e a competência para requisitar e atribuiu com exclusividade ao presidente da República a competência para efetivar a intervenção (art. 6º, §§ 1º, 2º e 3º), as duas primeiras concernentes à fase de deliberação e a última à fase de execução.

A ratio iuris desse regramento, propriamente dita, foi destacada por Pontes de Miranda ao referir-se ao citado art. 6º do texto original da Constituição de 1891. Após destacar a temeridade da solução que julgava suficiente o ato do presidente da República, na exegese desse artigo28, tratou da solução adotada na Revisão Constitucional de 1926 (Pontes de Miranda, 1970, p. 244-245):

O problema da distribuição das funções interventivas (deliberação, execução) apresentou-se à Revisão de 1925-1926, que da incumbência se saiu com certa independência e galhardia. Dividiu a ação interventiva em duas fases: – uma de deliberação e outra de execução. E confiou aquela aos três Poderes, conforme a espécie, e essa, só ao Presidente da República. Se o Presidente da República intervinha, fora dos casos previstos, incorria em crime de responsabilidade, de acordo com o disposto nos arts. 1º, 2º e 22 da Lei n. 30, de 8 de janeiro de 1892.

A doutrina prevalecente na Revisão Constitucional de 1926 põe em evidência o princípio de que a intervenção constitui matéria de competência do Estado Federal, que compreende os órgãos constitucionais dos três Poderes do Estado, não se restringindo ao Poder Executivo.

Essa divisão foi contemplada na Constituição de 1934, que, como anotou Pontes de Miranda, estabeleceu “todo um sistema de freios e contrapesos, a fim de se evitar o arbitrário na decretação da medida interventiva”29. Na mesma linha, os textos constitucionais posteriores, inclusive a Constituição vigente, cuidaram de dividir as competências interventivas entre os órgãos constitucionais do Estado, reforçando a garantia de autonomia dos Estados membros30.

Parece claro, portanto, que as funções interventivas são exercidas pelo Estado Federal por meio dos órgãos constitucionais indicados no texto fundamental. Especificamente no tocante à representação interventiva, por inobservância dos princípios constitucionais sensíveis, sob o regime da Constituição de 1946, assinalou Pontes de Miranda (1953, p. 487-488):

Se bem que se diga que o ato arguido de inconstitucionalidade será submetido ao Supremo Tribunal Federal, o que, em verdade, se lhe submete é o ato como pressuposto possível de intervenção: só se lhe pede – e é o Estado federal que o pede, através do Congresso Nacional e do Procurador-Geral da República – que decida se existe, não o estado de inobservância de princípio constitucional, nem tampouco, se é constitucional a intervenção (Constituição de 1934, art. 12, § 2º), mas a inconstitucionalidade do ato de que se partirá para enunciar-se, no Congresso Nacional, que há inobservância de princípio constitucional.

Essas lições reveladas na evolução dos textos constitucionais anteriores tornam bem nítido o alcance da fórmula prevista na Constituição vigente, cujo art. 129, inciso IV, dispõe que a ação direta para fins de intervenção da União e dos Estados constitui função institucional do Ministério Público, isto é, função própria desse órgão constitucional do Estado, excluindo, portanto, a ideia de representação. As funções institucionais elencadas no art. 129, como referido anteriormente, têm o sentido de garantir efetividade à atuação do Ministério Público na consecução dos grandes objetivos descritos na regra do art. 127, entre os quais a incumbência de defesa da ordem jurídica, na qual se inserem a representação interventiva e também as ações de inconstitucionalidade. Essas lições reveladas na evolução dos textos constitucionais anteriores tornam bem nítido o alcance da fórmula prevista na Constituição vigente, cujo art. 129, inciso IV, dispõe que a ação direta para fins de intervenção da União e dos Estados constitui função institucional do Ministério Público, isto é, função própria desse órgão constitucional do Estado, excluindo, portanto, a ideia de representação. As funções institucionais elencadas no art. 129, como referido anteriormente, têm o sentido de garantir efetividade à atuação do Ministério Público na consecução dos grandes objetivos descritos na regra do art. 127, entre os quais a incumbência de defesa da ordem jurídica, na qual se inserem a representação interventiva e também as ações de inconstitucionalidade.

Os textos constitucionais de 1934, 1946 e 1967/69 conferiram a titularidade da representação interventiva ao procurador-geral da República, não porque lhe coubesse a representação da União, mas sim porque ao Ministério Público sempre foi confiada a defesa da ordem jurídica, que compreende, em primeiro plano, a defesa da própria Constituição. É este o elemento objetivo sobre que recai direta e imediatamente a tutela da Lei Fundamental. A legitimação para a causa, assim, é conferida à instituição constitucionalmente destinada à defesa da ordem jurídica, isto é, àquela que detém a própria titularidade no plano do direito material.

Atua na defesa da ordem jurídica constitucional para garantir a observância de princípios essenciais à Federação, denominados princípios constitucionais sensíveis – expressão empregada por Pontes de Miranda (1970, p. 286) e hoje de uso corrente na doutrina e na jurisprudência –, ou ainda para assegurar a execução de lei federal.

Por isso mesmo, a Constituição vigente, que atribuiu a representação judicial e extrajudicial da União à Advocacia-Geral da União, reafirmou o procurador-geral da República como titular da ação e definiu como uma das funções institucionais do Ministério Público a de promover ação para fins de intervenção da União nos Estados membros. Por outro lado, a EC n. 1, de 1969, que acrescentou a alínea d ao § 3º do art. 15 da Constituição de 1967, e a Constituição de 1988, em seu art. 35, IV, combinado com o art. 129, IV, atribuem competência ao chefe do Ministério Público local para promover representação para fins de intervenção dos Estados nos Municípios, sendo certo que, ao Ministério Público estadual, jamais foi atribuída a representação judicial dos Estados membros.

O procurador-geral da República, na condição de chefe do Ministério Público da União, portanto, é o órgão da União a que a Constituição confere, com exclusividade, legitimação para agir e titularidade no plano do direito material, como parte ativa na ação direta de inconstitucionalidade para fins de intervenção federal nos Estados membros. O procurador-geral de Justiça, na condição de chefe do Ministério Público local, por seu turno, é o órgão do Estado membro a que a Constituição Federal confere, com exclusividade, legitimação para agir e titularidade no plano do direito material, como parte ativa na ação direta de inconstitucionalidade para fins de intervenção nos Municípios.


26 “Art. 6º - O Governo federal não poderá intervir em negócios peculiares aos Estados, salvo: [...]”

27 Assim refere Pinto Ferreira (1989, p. 306) as duas correntes que se formaram no País nessa matéria:

“Naquela época, diante do laconismo do texto, duas correntes se formaram no País. A primeira sustentava que governo federal é sinônimo de poder executivo e que só o Presidente da República teria competência para decretar a intervenção. [...]

A segunda corrente dizia que, por governo federal, se deveria entender o conjunto dos três poderes da União [...]. Esta foi a doutrina que se firmou no bom pensamento da revisão constitucional de 1926 e mais tarde no ulterior desenvolvimento democrático constitucional.”

Entre os notáveis constitucionalistas que formavam a segunda corrente, encontrava-se João Barbalho (1902, p. 20), cujos fundamentos podem ser assim resumidos: a) a expressão Governo federal, constante do art. 6º da CF/1891, foi empregada em contraposição a governos locais para indicar a União ou os poderes da União; b) os trabalhos preparatórios indicam que a expressão foi utilizada como sinônimo de União Federal, e não no sentido restrito de Poder Executivo; c) a mesma expressão em outros artigos da Constituição exprimem o conjunto dos poderes federais ou a União Federal; e d) no direito comparado, as constituições dos países de organização federal (Estados Unidos, México e Suíça), conferem a função interventora à União, e não exclusivamente a um de seus poderes.

28 Assinalou a propósito Pontes de Miranda (1970, p. 243):

“Nos primeiros tempos da República, quando era discussão predileta e ponto elegante de controvérsia saber-se a que era que se referia a expressão ‘governo federal’ do art. 6º da Constituição de 1891, temia-se que pudesse prevalecer a solução que julgava suficiente o ato do Presidente da República. ‘Se ao Poder Executivo se concedesse essa faculdade’, dizia um dos apreensivos com o laconismo do art. 6º, ‘minada pela base ficaria a federação dos Estados, e a União brasileira, vacilante no seu alicerce, se esboroaria ao primeiro golpe que sobre ela vibrasse o mandatário infiel, que acaso subisse ao poder’”.

29 Este o teor da lição de Pontes de Miranda (1953, p. 449):

“Antes da Revisão de 1925-1926 à Constituição de 1891, a competência para decretar a intervenção constituía uma das questões mais renhidas do direito constitucional brasileiro. O texto somente se referia a ‘governo federal’ para cada um dos casos de intervenção. A Revisão de 1925-1926 procedeu à primeira separação dos poderes, a esse respeito. A lição passou à Constituição de 1934, na qual se adotou todo um sistema de freios e contrapesos, a fim de se evitar o arbitrário na decretação da medida interventiva”.

30 Em comentário à Constituição de 1946, mas também referindo a Carta de 1934, observa Pontes de Miranda (1953, p. 488): “Se o pressuposto da intervenção concerne a ato arguido de inconstitucionalidade, tem de ser ouvido, antes, por intermédio do Procurador-Geral da República, o Supremo Tribunal Federal. Reforça-se, assim, a garantia da autonomia dos Estados-membros, ao mesmo tempo que se retira do Congresso Nacional a vigilância da vida constitucional do país, na espécie [...]”.

5.2 Imputação da ação ao Ministério Público como órgão do Estado

A divisão das competências interventivas, estabelecida na Lei Fundamental, corresponde à atribuição de funções próprias aos órgãos por meio dos quais o Estado exerce suas atribuições constitucionais, excluindo, portanto, a ideia de representação.

As instituições do Estado, como salientou Santi Romano (1977, p. 105) na obra Princípios de direito constitucional geral, no ano de 1945, “são aquelas que constituem parte integrante da estrutura que o Estado possui como pessoa, da qual não se distinguem senão como partes do todo”. E completa: “são os ‘órgãos do Estado’ [...], isto é, aqueles entes, distintos das pessoas físicas que lhe são prepostas, por meio das quais o Estado quer e age”. Em outra passagem, refere Santi Romano (1977, p. 2000) que “a vontade ou ação do indivíduo” por meio do qual o Estado quer e age, “juridicamente, não lhe é própria, mas da instituição, e, como esta, não é mais do que um aspecto do Estado”.

A atuação e a vontade do órgão do Estado afastam a hipótese de representação, anotando a respeito o autor: “O órgão – entendido como instituição que faz parte integrante da estrutura do Estado [...] – nem mesmo representa o Estado, porque é o próprio Estado, e a relação de representação postula que representado e representante sejam dois, não um” (Santi Romano, 1977, p. 200).

Identicamente, anota Jorge Miranda (2011, p. 375) que “os órgãos são elementos integrantes do Estado [...]” e “órgãos constitucionais são aqueles através dos quais o Estado atua constitucionalmente”31. Acrescenta que o fenômeno da imputação consiste na “atribuição a certas pessoas físicas da função [...] de agirem como se fossem o Estado a agir” (p. 376); a vontade dessas pessoas singulares é considerada como vontade da pessoa coletiva e qualquer ato que pratiquem, automaticamente, enquanto tal, é também a ela atribuído. E conclui (p. 376):

Não há dualidade de pessoas (a pessoa titular dos direitos e a pessoa que os exerce), como na representação, legal ou voluntária. Há unidade: é uma só pessoa – a pessoa coletiva – que exerce o seu direito ou prossegue o seu interesse, mas mediante pessoas físicas – as que formam a vontade, as que são suportes ou titulares dos órgãos. [...] O órgão não representa a pessoa coletiva; o órgão é a pessoa coletiva e esta não pode ter outra dinâmica jurídica senão a que lhe vem do órgão. [Grifos no original].

Nas palavras de Kelsen (2000, p. 276), “o problema do Estado é um problema de imputação”. As ações dos indivíduos considerados órgãos estatais só podem ser imputadas ao Poder Público quando determinadas por uma ordem jurídica pressuposta, que estipula essas ações. E acrescenta: “Imputar uma ação humana ao Estado, como a uma pessoa invisível, é relacionar uma ação humana como ação de um órgão do Estado à unidade da ordem que estipula essa ação”.

Observa Hely Lopes Meirelles (1989, p. 58) que os órgãos integram a estrutura do Estado, como suas partes, acrescentando que, “nos limites de sua competência funcional, expressam a vontade da entidade a que pertencem e a vinculam por seus atos, manifestados através de seus agentes”. Invoca o autor a lição de Otto Gierke, segundo o qual órgãos públicos são “centros de competência instituídos para o desempenho de funções estatais, através de seus agentes, cuja atuação é imputada à pessoa jurídica a que pertencem”.

Assinala o autor (Meirelles, 2016, p. 73):

A atuação dos órgãos é imputada à pessoa jurídica que eles integram, mas nenhum órgão a representa juridicamente. [...] Não há entre a entidade e seus órgãos relação de representação ou de mandato, mas sim de imputação, porque a atividade dos órgãos identifica-se e confunde-se com a da pessoa jurídica. Daí por que os atos dos órgãos são havidos como da própria entidade que eles compõem. Assim, os órgãos do Estado são o próprio Estado compartimentado em centros de competência destinados ao melhor desempenho das funções estatais.

Invoque-se, por último, Gomes Canotilho (2002, p. 560-561) ao referir que a CRP utiliza o conceito de órgãos constitucionais em sentido amplo, para abranger todos os mencionados na Constituição, mas a doutrina também trata do conceito de órgãos constitucionais de soberania, muito mais restrito, assim considerados aqueles:

(1) cujo status e competências são imediata e fundamentalmente “constituídos” pela constituição; (2) que dispõem de um poder de auto-organização interna; (3) que não estão subordinados a quaisquer outros;(4) que estabelecem relações de interdependência e de controlo em relação a outros órgãos igualmente ordenados na e pela constituição.

O Ministério Público no Brasil encaixa-se nesse perfil, cumprindo, a respeito, invocar Hugo Nigro Mazzilli (2012, p. 68), segundo o qual o Ministério Público “constitui um dos órgãos pelos quais o Estado manifesta sua soberania”.

A disciplina observada na evolução dos sucessivos textos constitucionais e as lições da doutrina demonstram que o procurador-geral da República, chefe do Ministério Público da União, é parte ativa na representação interventiva, como órgão constitucional a que é imputada a titularidade da ação interventiva, e não como representante da União. A atribuição que lhe é conferida pela Lei Fundamental de promover a ação direta, para assegurar a observância dos princípios constitucionais sensíveis ou para prover a execução de lei federal, configura o fenômeno da imputação, que consiste na atribuição ao agente da função de agir como se fosse o Estado a agir.

O Ministério Público, na ação direta interventiva, não é representante do Estado, mas sim é o próprio Estado que atua por meio do órgão que dispõe de competência exclusiva conferida diretamente pela Constituição Federal para o exercício dessa função institucional. Conforme assinalado na doutrina, não há dualidade de pessoas, como ocorre na representação, mas sim unidade, e a União, pessoa coletiva competente para a intervenção nos Estados, só age, no processo da ação interventiva, pelo procurador-geral da República, que assume a posição de parte, quer em sentido formal, quer em sentido material. O mesmo se diga no tocante ao procurador-geral de Justiça, na representação para fins de intervenção dos Estados, órgão constitucional do Estado membro, que atua em nome próprio, como parte em sentido formal e material.


31 Adverte o autor que “não são, porém, os órgãos os únicos sujeitos constitucionais”, porque há “outras entidades, personificadas ou não, com direito ou poder de iniciativa ou de participação em atividades político-constitucionais relevantes”, que não órgãos do Estado. No sistema constitucional brasileiro têm essa qualificação, por exemplo, alguns dos legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade e para a ação declaratória de constitucionalidade arrolados nos incisos VII, VIII e IX do art. 103 da Constituição Federal (Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso Nacional e confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional).

6 Conclusões

A Constituição de 1934 introduziu no sistema constitucional brasileiro a representação junto ao Supremo Tribunal Federal para fins de intervenção da União nos Estados, conferindo ao procurador-geral da República legitimação exclusiva para seu ajuizamento. Os textos constitucionais posteriores, salvo o de 1937, reafirmaram essa atribuição privativa do procurador-geral, e a Constituição vigente insere essa representação como função institucional do Ministério Público.

A evolução histórica do Ministério Público no período republicano revela que, desde a Constituição de 1891, sempre coube a esse órgão do Estado a defesa da ordem jurídica, inclusive da ordem jurídica constitucional. A expressão “fiscal da lei” (custos legis), por isso, mostrou-se insuficiente para definir essa incumbência clássica da instituição.

A ação interventiva, como afirmado pelo Supremo Tribunal Federal desde o julgamento das primeiras ações dessa natureza, sob o regime da Constituição de 1946, encerra um contencioso de inconstitucionalidade entre a União, isto é, o Estado Federal, e o Estado membro, para garantir a observância dos chamados princípios constitucionais sensíveis ou para prover a execução de lei federal. No âmbito dos Estados, a representação interventiva, cuja titularidade é atribuída ao procurador-geral de Justiça, tem também caráter de litígio entre o Estado membro e o Município, para assegurar a observância dos princípios indicados na Constituição Estadual.

O procurador-geral da República age por iniciativa própria ou mediante provocação de terceiro interessado. Segundo a orientação definida pelo Supremo Tribunal Federal, o procurador-geral não estava nem está compelido ao ajuizamento da ação interventiva, em razão de arguição de inconstitucionalidade feita por terceiro.

A jurisprudência da Corte, entretanto, especialmente sob o regime da Constituição de 1946 e das Leis n. 2.271/1954 e n. 4.337/1964, admitia o encaminhamento pelo procurador-geral da representação da parte interessada em que se arguia a inconstitucionalidade do ato impugnado, com parecer contrário.

Essa forma de arguição de inconstitucionalidade não podia mais ser admitida no regime da CF de 1967, inclusive na redação da EC n. 1/1969, segundo a qual a decretação de intervenção, por inobservância dos princípios constitucionais sensíveis ou por recusa à execução de lei federal, dependia do provimento pelo STF da representação do PGR, que, por essa razão, devia necessariamente veicular pedido de declaração de inconstitucionalidade do ato. Entretanto, o art. 174, § 1º, do RI/STF de 1970 admitia o encaminhamento da arguição com parecer contrário do PGR. Essa forma de arguição, não obstante o equívoco do Regimento Interno de 1970, foi excluída por completo no RI/STF de 1980.

A decisão do Supremo Tribunal Federal ou a do Tribunal de Justiça que derem provimento à representação do procurador-geral da República ou do procurador-geral de Justiça, pronunciando a inconstitucionalidade do ato impugnado, têm natureza declaratória. Não desconstitui esse ato. O decreto de intervenção é que suspenderá a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade, ou, se não for bastante, provocará a sua exclusão do mundo jurídico, por ação decorrente da intervenção efetiva.

Persiste controvérsia quanto à parte ativa na representação interventiva, que consiste em saber se o procurador-geral da República age como substituto processual da coletividade, como representante da União ou como parte.

Quanto à primeira corrente, os sucessivos textos constitucionais não atribuíram ao Ministério Público a incumbência de defesa de todos os interesses da coletividade, em caráter amplo e genérico, de modo que essa doutrina está fundada em pressuposto inexistente. Ademais, a questão em torno da constitucionalidade ou inconstitucionalidade do ato impugnado constitui controvérsia sobre a existência de pressuposto a justificar a decretação da intervenção, que traduz o interesse substancial da União na causa. Essa função, consubstanciada na representação interventiva, foi conferida ao Ministério Público, instituição incumbida da defesa da ordem jurídica.

Quanto à segunda corrente, a evolução histórica do processo interventivo, em especial a partir da Revisão de 1926, repetida nos sucessivos textos constitucionais de 1946, 1967/1969 e 1988, demonstra que as funções interventivas foram imputadas diretamente aos órgãos constitucionais do Estado, indicados na Lei Fundamental, inclusive, em especial, ao procurador-geral da República, na esfera federal, e ao procurador-geral de Justiça, na esfera estadual, que atuam em nome próprio, como partes integrantes da estrutura do Estado, excluindo a ideia de representação.

O procurador-geral da República, na condição de chefe do Ministério Público da União, portanto, é o órgão a que a Constituição confere, com exclusividade, legitimação para agir e titularidade no plano do direito material, como parte ativa na ação direta de inconstitucionalidade para fins de intervenção federal nos Estados membros. O procurador-geral de Justiça, na condição de chefe do Ministério Público local, por seu turno, é o órgão do Estado membro a que a Constituição Federal confere, com exclusividade, legitimação para agir e titularidade no plano do direito material, como parte ativa na ação direta de inconstitucionalidade para fins de intervenção nos Municípios.

O Ministério Público, na ação direta interventiva, não é representante do Estado, mas sim é o próprio Estado que atua por meio do órgão que dispõe de competência exclusiva conferida diretamente pela Constituição Federal para o exercício dessa função institucional. Não há dualidade de pessoas, como ocorre na representação, mas sim unidade, e a União, pessoa coletiva competente para a intervenção nos Estados, só age, no processo da ação interventiva, por intermédio do procurador-geral da República.